Sejam Bem Vindos. Olá, alunos. Esta é mais uma ferramenta para o sucesso de nosso trabalho. Espero que vocês curtam e acessem com frequencia. Beijos e bom ano.
sábado, 24 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
ASSEMBLÉIA NA MATA
ASSEMBLÉIA
NA MATA
Foi um delírio de contentamento. Os
caçadores rodearam a onça morta, discutindo as peripécias da formidável
aventura.
Emília reclamou logo todas as horas para
si.
- Se não fosse a minha espetada com o
espeto de assar frango, queria ver...
- O que decidiu tudo foram as facadas que
dei – alegou Narizinho.
-Que nada! Juro que foi o meu tiro de
canhão – disse Rabicó.
-Pexote! Berrou Pedrinho. – A bala de
canhão nem arranhou a pele da onça, não está vendo?
Como daquela disputa pudesse sair briga, o
Visconde ponderou:
-Todos ajudaram a matar a onça e todos
merecem louvores. Mas se não fosse a pólvora de Pedrinho, estaríamos perdidos.
Depois de cegar a onça com a pólvora, tudo
ficou mais fácil. Basta de discussão.
Pedrinho apanhou uns cipós e juntos
amarraram a onça para leva-la à casa. Foi o que mais custou.
-Francamente! – disse Rabicó - prefiro matar
dez onças a puxar uma só!
O sol já estava alto, Narizinho disse:
-Pobre vovó! Passa maus momentos por nossa
causa. A esta hora deve estar aflita a procurar-nos por toda parte.
- Mas vai consolar-se vendo a bichana que
matamos – disse Pedrinho.
Duas horas depois avistaram a casa. Tia
Nastácia e Dona Benta estavam procurando pelo pomar...
-Lá vêm vindo eles, sinhá! E vem puxando
uma coisa esquisita... Quer ver que caçaram alguma paca?
Narizinho, de longe gritou:
- Adivinhe vovó, o que matamos!
- Uma paca? Um veado, um porco do mato, uma
capivara...
Narizinho, então chegou-se para ela e
disse, fazendo uma careta de apavorar:
-Uma onça, vovó!
O susto de D. Benta foi o maior de sua
vida.
- O mundo está perdido, sinhá – murmurou. –
É onça mesmo.
As cenas da caçada da onça haviam sido presenciadas
por muitos animaizinhos selvagens, entre eles um intrometidíssimo sagui. Ficou
tão admirado da proeza dos meninos que levou longo tempo a piscar. Por fim,
resolveu-se. Pulou de galho em galho e foi ter com a capivara que morava na
beira do rio.
Contou tudo a ela. A capivara abriu a boca.
Aquela onça era o terror de todos os bichos da redondeza. Como então, fora
vítima dos netos de D. Benta, simples crianças?
Se as crianças haviam matado a onça,
poderiam matar qualquer outro filho da selva.
-A situação é bastante grave. Vejo que
esses meninos são um grande perigo. Vou reunir uma assembleia de todos os bichos,
para discutirmos o caso e tomarmos as medidas necessárias para nossa segurança.
Ia passando pelo céu um gavião perseguido
por dois bem-te-vis. A capivara pediu que fossem os mensageiros.
- Avisem a todos para que estejam aqui
reunidos, amanhã à noitinha, debaixo da figueira Brava.
No dia seguinte, os animais foram chegando.
Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a
palavra e expos à situação perigosa em que se achavam todos.
-Peço a palavra!-gritou o bugio, que estava
de cabeça para baixo, seguro pelo rabo. –Acho que o melhor meio de escapar
desses meninos é fazer como nós: morar em árvores.
-Imbecil! – resmungou a capivara. – Quem tiver
uma ideia mais decente que fale.
-O meio que vejo é mudar-nos para outras
terras. – adiantou o jabuti.
O jabuti esclareceu que não existiam outras
terras. O homem destruiu todas.
A jaguatirica sugeriu guerra aos meninos do
sítio.
A capivara ficou pensativa. No entanto
lembrou-os que os animais não entendem nada de guerra.
-Pois que fique a luta a nosso cargo –
disse a jaguatirica. – Havemos de vencer aqueles meninos.
A assembleia aprovou a idéia. As onças,
jaguatiricas, cachorros do mato e iraras da floresta lutariam enquanto os
outros animais ficariam na torcida.
A assembleia dissolveu-se. Cada qual foi
para sua casa.
O NASCIMENTO DO VISCONDE
O NASCIMENTO DO VISCONDE
Narizinho estava no seu quarto conversando com a Emília .
- Acho que é tempo de mudar. Precisa casar, senão acaba ficando tia. Amanhã vencá um distinto cavalheiro pedir sua mão.
Emília andava bem de saúde, gorda e corada.
Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.
-Como não? protestou a menina - E Rabicó?
A boneca ficou indignada e declarou que jamais casaria com um medroso como aquele.
-Você está enganada, Emília, estive sabendo que Rabicó é um principe, que uma fada má transformou em porco até que ache um anel mágico escondido na barrica de certa minhoca.
Emília ficou pensativa. Ser princesa era seu sonho e se para isso fosse preciso casar-se com um fogou ou uma lata de lixo, ela o faria.
-Mas você tem certeza Narizinho?
-Certeza absoluta! Quem me contou foi o pai de Rabicó, o Sr. Visconde de Sabugosa.
-Visconde? Então o pai desse principe é Visconde só? Eu quero casar com principe filho de rei.
-Você é uma bobinha que não sabe de nada. O Visconde na verdade é muito bom rei de um reino lá atras do morro e quando ele vier reparem na cabeça dele e veja que tem um sinal de coroa ao redor da testa. Para esconder esse sinal ele usa cartola.
Emília pensou, pensou, pensou e disse:
-Aceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso, mas não vou morar com Rabicó enquanto ele não virar principe novamente.
-Muito bem! Nesse caso vai preparar para receber o Visconde.
Enquanto a boneca se vestia, Narizinho correu ao pomar a procura de Pedrinho.
-De pressa, Pedrinho! Arranje-me um bom visconde de sabugo, de cartola na cabeça, e venha com ele pedir Emília em casamento.
Pedrinho fez como Narizinho pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, nariz, boca, olhos e tudo. E não esqueceu a cartolinha.
E lá foi Pedrinho com o Visconde à casa da boneca, entrou. Narizinho fez-lhe reverência. -Muito prazer Sr. Visconde! E como vai a Sra. Viscondessa.
- Sou viuvo, respondeu Visconde suspirando.
Nisto Emília apareceu à porta.
- Se Rabico casar-se comigo só há de comer coisas gostosas e cheirosas.
Depois de saber das qualidades de Rabicó e tentada pela ideia de começar marquesa e um dia virar pricesa Emília aceitou-se casar.
Narizinho bateu palmas.
- Está tudo resolvido Sr. Visconde, abrase sua nora, a futura marquesa de Rabico...
O Visconde ergueu-se abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na testa.
Emília, muito vermelhinha foi correndo para o quarto.
Histórias de Tia Nastácia
HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA
Monteiro Lobato
Pedrinho, na varanda, lia um jornal. De repente parou, e disse a Emília, que andava rondando por ali:
— Vá perguntar a vovó o que quer dizer folclore.
— Vá? Dobre a língua. Eu só faço coisas quando me pedem, por favor.
Pedrinho, que estava com preguiça de levantar-se, cedeu à exigência da ex-boneca.
— Emilinha do coração — disse ele — faça-me o maravilhoso favor de ir perguntar à vovó que coisa significa a palavra folclore, sim, tetéia?
Emília foi e voltou com a resposta.
— Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro, de pais a filhos — os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria popular, etc. e tal. Por que pergunta isso, Pedrinho?
O menino calou-se. Estava pensativo, com os olhos lá longe. Depois disse:
— Uma ideia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.
Emília arregalou os olhos.
— Não está má a ideia, não, Pedrinho! Às vezes a gente tem uma coisa muito interessante em casa e nem percebe.
— As negras velhas — disse Pedrinho — são sempre muito sabidas.
Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se tia Nastácia não é uma segunda tia Esméria?
Foi assim que nasceram as Histórias de Tia Nastácia.
II O bicho Manjaléu
Era uma vez um velho que tinha três filhas muito bonitas, mas um velho muito pobre, que vivia de fazer gamelas.
Uma vez passou pela sua casa um lindo moço a cavalo; parou e declarou que queria comprar uma das moças.
O velho se ofendeu; disse que por ser pobre não era nenhum malvado que andasse vendendo as filhas; mas diante das ameaças do moço teve que aceitar o negócio.
Lá se foi a sua primeira filha na garupa do cavaleiro, e o velho ficaram olhando para o ouro recebido.
No dia seguinte apareceu outro moço, ainda mais lindo, montado num cavalo ainda mais bonito e propôs-se a comprar a filha do meio.
O velho, bastante aborrecido, contou o que se tinha passado com a primeira, e não quis aceitar o negócio.
O moço ameaçou matá-lo, e também lá se foi com a segunda moça na garupa, deixando com o velho dois sacos de dinheiro.
No dia imediato apareceu terceiro moço e depois da mesma discussão lá se foi com a derradeira moça na garupa, deixando em troca três sacos de dinheiro.
O velho ficou muito rico, mas sem as filhas, e começou a criar com grandes mimos um filhinho que havia nascido fora de tempo. Quando já estava na escola esse menino teve uma briga com um companheiro, o qual lhe disse:
- Você está prosa por ter pai rico, mas saiba que ele já foi um pobre diabo que vivia de fazer gamelas. Está rico porque vendeu as filhas.
O menino voltou pensativo para casa, mas nada disse. Só quando ficou moço é que pediu ao pai que lhe contasse a história das três irmãs vendidas.
O pai contou tudo e ele resolveu sair pelo mundo em procura das irmãs.
No meio do caminho encontrou três marmanjos brigando por causa duma bota, duma carapuça e duma chave. Indagando do valor daquilo, soube que eram uma bota, uma carapuça e uma chave mágicas. Quando alguém dizia à bota: "Bota, bote-me em tal parte!" a bota botava. E se diziam à carapuça: "Carapuça, encarapuce-me!" a carapuça encarapuçava, isto é, escondia a pessoa. E se diziam à chave: "Chave, abre!" a chave abria qualquer porta. O moço ofereceu pelos três objetos o dinheiro que trazia e lá se foi com eles.
Logo adiante parou e disse: - Bota, bote-me em casa de minha primeira irmã.
Mal acabou de pronunciar tais palavras, já se achou na porta de um palácio maravilhoso.
Falou com o porteiro. Pediu para entrar, dizendo que a dona do palácio era sua irmã.
A irmã soube da sua chegada, acreditou em suas palavras e o recebeu muito bem.
— Mas como conseguiu chegar até aqui, meu irmão?
— Por meio da bota mágica — respondeu ele. E contou toda a história da sua partida e do encontro dos três objetos mágicos. Tudo correu bem, mas assim que começou a entardecer a irmã pôs- se a chorar.
— Por que choras, minha irmã?
— Ah — respondeu ela — choro porque sou casada com o rei dos Peixes, um príncipe muito bravo que não quer que eu receba ninguém neste palácio. Ele não tarda a chegar, e mata você, se enxergar você aqui...
O moço deu uma risadinha, dizendo:
—Não tenha medo de nada. Com a carapuça mágica saberei esconder-me.
O rei chegou e logo levantou o nariz para o ar, farejando:
— Sinto cheiro de gente de fora!
Mas a rainha mostrou que não havia por ali ninguém e ele sossegou.
Tomou um banho e se desencantou num lindo moço. Durante o jantar a rainha fez esta pergunta:
— Se aparecesse por cá um irmão meu, que faria Vossa Majestade?
— Recebia-o muito bem — disse o rei — porque o irmão da rainha, cunhado do rei é. E se ele está por aqui, que apareça.
O irmão encarapuçado apresentou-se, sendo muito bem recebido. Contou toda a sua história, mas não aceitou o convite de ficar morando ali por ter de continuar pelo mundo em procura das outras irmãs.
O rei olhou com inveja para as botas mágicas, dizendo: - Se eu as pilhasse, iria ver a rainha de Castela.
Na hora da partida o rei deu-lhe uma escama. Quando estiver em apuros, pegue nesta escama e diga: Valha-me, rei dos Peixes!
O moço agradeceu o presente e lá se foi depois de dizer à bota: "Bota, bote-me na casa de minha segunda irmã", e imediatamente se achou defronte de outro palácio, onde foi recebido pela segunda irmã, que era a esposa do rei dos Carneiros.
- Meu marido logo chega por aí, a dar marradas a torto e a direito, e você não escapa.
— Com a minha carapuça escapo — respondeu o rapaz, rindo-se. E contou a virtude da carapuça encantada. E de fato foi assim, correndo tudo direitinho como lá no palácio do rei dos Peixes.
Na hora da partida o rei dos Carneiros disse: - Tome este fio de lã. Quando estiver em apuros, basta que pegue nele e diga: Valha-me, rei dos Carneiros. Em seguida olhou com inveja para as botas mágicas. - Se as pilhasse, iria ver a rainha de Castela.
Logo que o moço se viu na estrada, parou e disse à bota. "Bota, bote- me em casa da minha terceira irmã", e a bota botou-o no portão dum terceiro palácio ainda mais belo que os outros.
Era ali o reino do rei dos Pombos, onde tudo aconteceu como no reino do rei dos Peixes e no reino do rei dos Carneiros.
Foi muito bem recebido e festejado, até que na hora da partida o rei dos Pombos suspirou olhando para as botas, e disse: - Se eu pilhasse essas botas, iria ver a rainha de Castela.
Em seguida deu ao moço uma pena, dizendo: "Quando estiver em apuros, pegue nesta pena e diga: Valha-me, rei dos Pombos.
Logo que o moço se viu na estrada, pôs-se a pensar na tal rainha de Castela que os três príncipes queriam visitar, e disse à bota mágica: "Bota, bote-me no reino da rainha de Castela!" E num instante a bota o botou lá.
Soube que era uma princesa solteira, tão linda que ninguém passava pela frente do seu palácio sem erguer os olhos, na esperança de vê-la à janela. Mas a princesa tinha jurado só se casar com quem passasse pelo palácio sem erguer os olhos.
O moço então passou pela frente do palácio sem erguer os olhos e a princesa imediatamente casou com ele. Depois do casamento a princesa quis saber para que serviam aqueles objetos que ele sempre trazia consigo — e o que mais a interessou foi a chave de abrir todas as portas.
A razão disso era haver no palácio uma sala sempre fechada, onde o rei não permitia que ninguém entrasse. Nela morava o Manjaléu — um bicho feroz, que por mais que o matassem revivia sempre.
A princesa andava ardendo de curiosidade de ver o bicho Manjaléu, e certa vez, em que o rei e o marido foram à caça, pegou a chave e abriu a porta da sala do mistério. Mas o bicho feroz pulou e agarrou-a, dizendo: "Era você mesma que eu queria!" E lá se foi para a floresta com a pobre moça ao ombro.
Quando o rei e o marido da princesa voltaram da caça e souberam do acontecido, ficaram desesperados. Mas o dono das botas mágicas prometeu consertar tudo. Agarrou-as e disse: "Bota, bote-me onde está minha esposa". E a bota botou-o. O moço encontrou a princesa sozinha, pois que o Manjaléu andava pelo mato caçando.
— Minha querida esposa — disse ele — precisamos dar cabo desse monstro feroz, mas para isso é necessário que eu saiba onde é que ele tem a vida. A vida do Manjaléu está tão bem oculta que todas as tentativas para matá-lo têm falhado. Trate de saber onde ele tem a vida. A princesa prometeu que assim faria, e quando o Manjaléu voltou deu jeito da conversa recair naquele ponto. Manjaléu desconfiou.
— Ahn! Quer saber onde eu tenho a vida para me matar, não é? Não conto, não.
Mas a princesa, teimosa, tanto insistiu durante dias e dias que o bicho Manjaléu resolveu contar tudo.
Antes disso ele amolou, bem amolado, um alfanje, dizendo: "Vou contar onde está minha vida mas se perceber que alguém quer dar cabo de mim, corto sua cabeça com este alfanje, está ouvindo?"
A princesa aceitou a proposta. Ele que contasse tudo que ela ficaria com o pescoço às ordens do alfanje, no caso de alguém atentar contra vida do monstro. E o bicho Manjaléu então contou: "Minha vida está no mar. Lá no fundo há um caixão; nesse caixão há uma pedra; dentro da pedra há uma pomba; dentro da pomba há um ovo; dentro do ovo há uma velinha, que é a minha vida. Quando essa vela apagar-se, eu morrerei".
No dia seguinte, quando o bicho Manjaléu saiu novamente a caçar, o marido da princesa, que estivera escondido pela carapuça, apresentou-se.
- E então? — perguntou.
A princesa contou-lhe direitinho tudo que ouvira ao monstro. O moço dirigiu-se à praia do mar e pegou na escama, dizendo: "Valha-me, rei dos Peixes!" E imediatamente o mar se coalhou de peixes que indagavam do que ele queria.
— Quero saber em que ponto do fundo do mar há um caixão assim e assim.
— Eu sei — respondeu um enorme baiacu. — Ainda há pouquinho esbarrei nele. Esse caixão está em tal e tal parte.
— Pois quero que me tragam aqui esse caixão. Os peixes saíram na volada; logo depois apareceram empurrando um caixão para a praia. O príncipe abriu-o e encontrou a pedra. Como quebrá-la? Lembrou--se do fio de lã. Pegou no fio de lã e disse: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Imediatamente apareceram inúmeros carneiros, que deram tantas marradas na pedra que a partiram.
Enquanto isso, lá longe, o Manjaléu, com a cabeça no colo da princesa e o alfanje na mão, ia sentindo coisas esquisitas.
— Minha princesa — disse ele — estou me sentindo doente. Alguém está mexendo na minha vida. E sua mão apertou o cabo do alfanje.
A princesa engambelou-o como pôde, para ganhar tempo. Ela sabia que seu marido estava em procura da vida do monstro. Assim que os carneiros quebraram a pedra, uma pombinha voou de dentro e lá se foi pelos ares. O moço lembrou-se da pena, pegou-a e disse: "Valha-me, rei dos Pombos!".
Imediatamente o ar se encheu de pombos, que o moço mandou voarem em perseguição da pombinha. Os pombos foram atrás dela e a pegaram. O moço tomou-a, espremeu-a e fez sair um ovo. Lá longe o Manjaléu se sentia cada vez pior. Começava a desfalecer; e como não tivesse dúvidas sobre o que era aquilo, foi levantando o alfanje para degolar a princesa.
Mas não teve tempo. O moço havia quebrado o ovo e assoprado a velinha. A mão do Manjaléu moleou — e seus olhos fecharam- se para sempre.
Estava o reino de Castela livre daquele horrendo monstro. O moço levou a princesa para o palácio, onde o rei a recebeu com lágrimas nos olhos. E para comemorar o grande acontecimento decretou uma semana inteira de festas. E acabou-se a história.
Emília torceu o nariz. — Essas histórias folclóricas são bastante bobas — disse ela.
— Por isso é que não sou "democrática!” Acho o povo muito idiota...
— Nossa Senhora! — exclamou dona Benta. — Vejam só como anda importante a nossa Emilinha. Fala que nem um doutor.
— A culpa é sua — disse Emília. — A culpa é de quem nos anda ensinando tantas ciências e artes. Eu, por exemplo, me sinto adiantada demais para a minha idade. Sou uma isca por fora, mas lá dentro já estou filósofa. Meu gosto era encontrar um Sócrates, para uma conversa...
— Eu também acho muito ingênua essa história de rei e princesa e botas encantadas — disse Narizinho. — Depois que li o Peter Pan, fiquei exigente. Estou de acordo com Emília.
— Pois eu gostei da história — disse Pedrinho — porque me dá ideia da mentalidade do nosso povo. A gente deve conhecer essas histórias como um estudo da mentalidade do povo.
Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.
— Vê, Nastácia, como está ficando este meu povinho? Falam como se fossem gente grande, das sabidas. Democracia para cá, folclórico para lá, mentalidade... Neste andar meu sítio acaba virando Universidade do Picapau Amarelo.
— Emília já disse que a culpa é sua, sinhá. A senhora vive ensinando tantas coisas dos livros que eles acabam sabidões demais. Eu até fico tonta de lidar com essa criançada. Às vezes nem entendo o que me dizem. Ontem o Visconde veio para cima de mim com uma história de "rocha sedimentaria", ou coisa assim, que até eu tive de tocar ele lá da cozinha com o cabo da vassoura. Já não percebo nem uma isca do que o Visconde diz...
Mas as histórias continuaram. Naquele mesmo serão tia Nastácia teve de contar mais uma...
A Chave do Tamanho
A Chave do Tamanho
I Pôr de sol de trombeta
I Pôr de sol de trombeta
O pôr do sol de hoje é de trombeta — disse Emília, com as mãos na cintura, depezinha sobre o batente da porteira onde, naquela tarde, depois do passeio pela floresta, o pessoal de Dona Benta havia parado. Eles nunca perdiam ensejo de aproveitar os espetáculos da natureza. Nas chuvas fortes, Narizinho ficava de nariz colado à janela, vendo chover. Se ventava, Pedrinho corria à varanda com o binóculo para espiar a dança das folhas secas — "quero ver se tem saci dentro". E o Visconde dava as explicações científicas de todas as coisas.
O pôr do sol daquele dia estava realmente lindo. Era um pôr de sol de trombeta. Por quê? Porque Emília tinha inventado que em certos dias o Sol "tocava trombeta a fim de reunir todos os vermelhos e ouros do mundo para a festa do acaso". Diante dum pôr de sol de trombeta ninguém tinha ânimo de falar, porque tudo quanto dissessem saía bobagem. Mas Dona Benta não se conteve.
— Que maravilhoso fenômeno é o pôr do sol! — disse ela.
Emília deu um pisco para o Visconde por causa daquele "fenômeno", e resolveu encrencar. — Por que é que se diz "pôr do sol", Dona Benta? — perguntou com o seu célebre ar de anjo de inocência. — Que é que o Sol põe? Algum ovo?
Dona Benta percebeu que aquilo era uma pergunta-armadilha, das que forçavam certa resposta e preparavam o terreno para o famoso "então" da Emília.
— O Sol não põe nada, bobinha. O sol põe-se a si mesmo.
— Então ele é o ovo de si mesmo. Que graça!
Dona Benta teve a pachorra de explicar.
— Pôr do sol" é um modo de dizer. Você bem sabe que o Sol não se põe nunca; a Terra e os outros planetas é que se movem em redor dele. Mas a impressão nossa é de que o Sol se move em redor da Terra — e portanto nasce pela manhã e põe-se à tarde.
— Estou cansada de saber disso — declarou Emília. — A minha implicância é com o tal de pôr. "Pôr" sempre foi botar uma coisa em certo lugar. A galinha põe o ovo no ninho. O Visconde põe a cartola na cabeça. Pedrinho põe o dedo no nariz.
— Mentira! — gritou Pedrinho desapontado, tirando depressa o dedo do nariz.
— Mas o Sol — continuou Emília — não põe cartola na cabeça, nem tem o péssimo costume de tirar ouro do nariz.
— É um modo de dizer, já expliquei — repetiu Dona Benta.
— Estou vendo que tudo que a gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha. Isto é, são pequenas mentiras — e depois vivem dizendo às crianças que não mintam! Ah! Ah! Ah!... Os tais poetas, por exemplo. Que é que fazem senão mentir? Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro Alves que termina assim: “Andrada! Arranca esse pendão dos ares! Colombo! Fecha a porta dos teus mares!” Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu arrancar uma bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse bandeira não é dente que se arranque? Bandeira desce-se do pau pela cordinha. E como é que esse poeta, um soldado raso, se atreve a dar ordens a Colombo, um almirante? E como é que manda Colombo fechar a "porta" dos "teus" mares, se o mar não tem porta e Colombo nunca teve mares...
— quem tem mares é a Terra? Dona Benta suspirou.
— Modos de dizer, Emília. Sem esses modos de dizer, aos quais chamamos "imagens poéticas", Castro Alves não podia fazer versos.
— Mas é ou não é mentira?
Dona Benta ia abrindo a boca para a resposta, quando um homem a cavalo apontou na curva da estrada. Era o estafeta que, um dia sim, um dia não, portava ali para entregar a correspondência. Todos tiraram os olhos do pôr do sol para pô-los no estafeta.
O homem chegou. Deu boa tarde. Apeou com ar de eterno descadeirado e abriu o encardido saco de lona para tirar os jornais de Dona Benta.
— Há também uma carta para o Sr. Visconde de Sabugosa — disse ele entregando o pacote.
Emília atirou-se para cima da carta como um gato se atira a uma cabeça de sardinha, e arrancou-a das mãos de Dona Benta, como o poeta queria que o Andrada arrancasse a bandeira dos ares.
— Deve ser resposta a uma consulta que fiz sobre as vitaminas do pó de pirlimpimpim — explicou modestamente o Visconde, enquanto Emília se preparava para rasgar o envelope e Pedrinho suspirava pelo bodoque.
— Não abra, Emília! — gritou Narizinho. — Vovó já disse que o sigilo da correspondência é inviolável. Carta é uma coisa sagrada. Só o destinatário pode abri-la.
Emília fez um muxoxo de pouco caso e enfiou a carta no nariz do Visconde, dizendo:
— Coma, beba o seu sigilo. Enquanto isso, Pedrinho desdobrava o jornal e lia os enormes títulos e subtítulos da guerra.
— Novo bombardeio de Londres, vovó. Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beça.
O rosto de Dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.
— Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.
— Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de morrer. Desde que a imensa desgraça começou não faço outra coisa senão pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda cheio da dor de todas as avós e mães distantes, que choram a matança de seus pobres filhos e netinhos.
Aquela tristeza de Dona Benta andava a anoitecer o Sítio do Picapau, outrora tão alegre e feliz. E foi justamente essa tristeza que levou Emília a planejar e realizar a mais tremenda aventura que ainda houve no mundo.
Emília jurara consigo mesma que daria cabo da guerra e cumpriu o juramento — mas por um triz não acabou também com a humanidade inteira.
Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono.
Quem entrasse em sua cabeça leria um pensamento assim: "Esta guerra já está durando demais, e se eu não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma sabe. Mas se eu tornar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas duma casa”.
O Visconde, de fato, andava estudando um misterioso superpó, capaz de maravilhas ainda maiores que o velho pó de pirlimpimpim; por isso passava as noites em claro e até recebia cartas científicas do estrangeiro. Mas naquela noite Emília ouviu uns ronquinhos. "Será o Visconde?" — disse ela — e foi ver. Era o Visconde, sim, que, depois de noites e noites passadas em claro, dormia um sono de Rabicó. "Se ele está ferrado no sono a ponto de roncar" — pensou Emília, "é que já resolveu o problema do superpó. Ronco de sábio quer dizer cabeça fresca, invenção já inventada".
Pensando assim, Emília foi pé ante pé ao laboratório do Visconde e remexeu tudo até encontrar numa pequena caixa de fósforos uma substância parecida com cinza. Cheirou-a. Lembrava o cheiro do pó de pirlimpimpim. "Deve ser isto mesmo" — disse ela — e corajosamente tomou uma pitada.
II A Chave do Tamanho
Fiunnn!!!
Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de madrugada. Não enxergou árvores, nem montanhas nem coisa nenhuma — só havia lá longe um misterioso casarão.
— Isto deve ser o Fim do Mundo, e aquela casa só pode ser a Casa das Chaves. Que pó certeiro o do Visconde!
Ergueu-se, ainda tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho! Um grande letreiro na fachada dizia simplesmente isto: "CASA DAS CHAVES."
Emília esteve algum tempo de nariz para o ar, com os olhos naquelas estranhas letras de luz. Viu uma porta aberta. Enchendo-se de coragem, entrou. Não havia coisas lã dentro, objeto nenhum, nem máquinas. Só aquele mesmo nevoeiro de lá fora mas numa espécie de parede distinguiu um correr de chaves como as da eletricidade, todas erguidas para cima.
— Hão de ser as chaves que regulam e graduam todas as coisas do mundo — pensou Emília. — Uma delas, portanto, é a chave que abre e fecha as guerras Mas qual?
Emília segurou o queixo, a refletir Pensou com toda a força. Não havia diferença entre as chaves. Todas iguaizinhas. Nada de letreiros ou números. Como saber qual a chave da guerra?
— A única solução é aplicar o método experimental que o Visconde usa em seu laboratório. É ir mexendo nas chaves, uma a uma, até dar com a da guerra.
Mas as chaves ficavam numa fileira a oito palmos do chão, fora, pois, do alcance duma criaturinha de apenas dois palmos de altura. Como alcançar as chaves?
Emília correu os olhos em redor. Não viu nenhuma escada nem cadeira, nem caixão em que pudesse trepar. Não havia sequer uma vara. O remédio seria recorrer novamente ao superpó. "Se eu cheirar a metade do menor dos grãozinhos trazidos nesta caixa, subo até lá e agarro-me a qualquer das chaves."
E assim fez. Escolheu o grãozinho de pó menor de todos, partiu-o ao meio e aspirou metade. Deu certo. Bastou o cheiro daquela isca de superpó para erguê-la até às chaves, permitindo-lhe pendurar-se numa. Nem
precisou fazer força. Bastou o seu peso para que a chave descesse quase até o fim.
Mas o que aconteceu foi a coisa mais imprevista do mundo. Tudo se transformou diante de seus olhos, e um pano enorme, como o toldo dum circo de cavalinhos, desabou sobre ela. Emília sentiu-se rodeada de pano; o chão era de pano; por cima só havia pano; dos lados, pano, pano e mais pano. E com o peso de tanto pano ela nem podia conservar-se de pé. Ficou deitadinha, como achatada. Mas era preciso sair dali ou pelo menos fazer esforços para sair, porque já estava sentindo falta de ar.
E começou a engatinhar debaixo da panaria, numa cega tentativa de fuga. As dobras eram muitas, de modo que a cada momento, tinha de fazer rodeios para poder avançar. E foi engatinhando, flanqueando as dobras atrapalhadoras; às vezes até ficava de pé, quando uma dobra maior lhe dava espaço.
Emília lembrou-se do Labirinto de Creta, onde morava o Minotauro. É escuro ali dentro. Nem ao menos aquela penumbra de madrugada de lá fora. Emília teve a impressão de haver passado um século naquele engatinhamento labiríntico.
Por fim divisou em certa direção uma claridade. "Deve ser ali a bainha ou fim deste maldito pano", pensou ela, e para lá se arrastou. Era de fato a bainha — e Emília já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e caiu exausta no chão, com um Uf!
Ficou algum tempo deitada de costas, os braços estendidos, sem pensar em coisa nenhuma. Primeiro descansar; depois o resto. Ergueu os olhos para as chaves da parede. Não viu na parede chave nenhuma. "Que história é esta? Será que as chaves se evaporaram?" Firmando a vista, verificou que não. As chaves lá estavam, mas em ponto muitíssimo mais alto. A parede crescera tremendamente. Parecia não ter fim. Tudo aumentara dum modo prodigioso. E no chão viu uma coisa nova, que não existia antes; um pedestal atapetado de papel amarelo.
Emília achava-se deitada justamente sobre esse pedestal. Depois, olhando para o seu corpinho, verificou que estava nua.
— Que história é esta? Eu, nua que nem minhoca, em cima deste pedestal amarelo cheio de riscos pretos, ao lado duma montanha de pano — e as chaves lá em cima — e tudo enormíssimo... Será que estou sonhando?
Pôs-se a pensar com toda a força. Examinou o tapete do pedestal.
Percebeu que os riscos eram letras e teve de ficar de pé para lê-las uma por uma. A primeira era um F; a segunda, um O; a terceira um S. Chegando à última, viu que formava a palavra FÓSFOROS. Em seguida vinha um D e um E, formando a palavra DE. E as últimas letras formavam a palavra SEGURANÇA. Tudo reunido dava a expressão FÓSFOROS DE SEGURANÇA.
— Será possível? — exclamou Emília consigo mesma. — Será que estou em cima da maior caixa de fósforos que jamais houve no mundo? Mas se é assim, então cada pau de fósforo deve ser uma verdadeira vigota de pinho — e como a caixa estivesse aberta, espiou. Não viu lá dentro vigota nenhuma, sim uma espécie de areia grossa, da cor exata do superpó do Visconde.
Nesse momento um raio de luz iluminou lhe o cérebro.
— Hum! Já sei. Isto é a caixa de fósforos que eu trouxe e está do tamanho que sempre foi. Eu é que diminuí. Fiquei pequeníssima; e, como estou pequeníssima, todas as coisas me parecem tremendamente grandes.
Aconteceu-me o que às vezes acontecia a Alice no País das Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do tamanho dum mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?
E pôs-se a pensar mais forte ainda.
— Só pode ser por uma coisa: por causa da descida da chave. Logo, aquela chave é a que regula o meu tamanho. Regula só o meu tamanho, ou regula o tamanho de todas as criaturas vivas? Regula o tamanho de todas as criaturas vivas, ou só o das criaturas humanas?
Quantos problemas, meu Deus!
Pensou, pensou.
— Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças tão transtornadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou!
Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa...
Pensou, pensou, pensou.
— Sim, eu mexi na Chave do Tamanho e todas as criaturas vivas ficaram pequenas porque seria absurdo haver uma chave só para minha pessoa. Se houvesse uma chave para cada pessoa, nesta sala deviam existir três bilhões e meio de chaves, porque a população do mundo é de três bilhões e meio de pessoas. Logo, a mesma chave serve para todas as pessoas. Logo, toda a humanidade está "reduzida" — e impedida de fazer guerra. Uf! Acabei com a guerra! Viva! Viva!... Pensou, pensou, pensou.
— A prova de que essa chave só regula o tamanho das criaturas vivas, está aqui nesta caixa de fósforos. Se esta caixa de fósforos também tivesse diminuído, estaria proporcional ao meu corpo, e não imensa como está.
A situação era tão nova que as suas velhas ideias não serviam mais.
Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia explicado, isto é, que nossas ideias são filhas de nossa experiência. Ora, a mudança do tamanho da humanidade vinha tornar as ideias tão inúteis quanto um tostão furado. A ideia de uma caixa de fósforos, por exemplo, era a ideia de uma coisinha que os homens carregavam no bolso. Mas com as criaturas diminuídas a ponto de uma caixa de fósforos ficar de tamanho de um pedestal de estátua, a ideia de uma caixa de fósforos já não vale coisa nenhuma...
Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida no mundo.
Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho teria.
— Posso calcular o meu tamanho por comparação com as letras da palavra FÓSFOROS. Essas letras tinham um terço de centímetro no tempo em que eu tinha 40. Ora, se eu tinha 40 centímetros, era 120 vezes maior que um terço de centímetro. E agora? Qual o meu tamanho em relação a essas letras?
Para fazer a medição, Emília deitou-se sobre o F, e viu que aquele F tinha um terço da sua altura. Logo, ela estava reduzida a justamente um centímetro de altura.
— Que coisa — exclamou. Reduzida a um centímetro apenas, eu que tinha 40! Diminui 40 vezes. Nesse caso, Pedrinho, que tinha l,40m. — e contava tanta prosa — deve estar reduzido a 3 centímetros e meio. E o coronel Teodorico, que tanto se gabava de ter l,80m está reduzido a 4 centímetros e meio — do tamanho dum simples gafanhotinho...
Emília pensava, pensava.
— Que fazer agora? Tenho várias soluções a escolher. Uma, é largar tudo como está. Outra, é levantar novamente a chave e deixar as coisas como eram. Isto me parece o melhor, porque se eu voltar para o sítio deste tamanho é provável que nem possa atravessar o terreiro. O pinto sura não sai de lá. Devora-me, como se eu fosse uma formiga.
Olhou para cima. A chave baixada parecia muito no alto — quarenta vezes mais alta que antes. Mas isso não tinha importância para quem ainda dispunha de tanto superpó. E, enfiando a mão dentro da abertura da caixa, Emília apanhou um grão e aspirou-o. O pó levou-a até à altura da chave, mas a sua forcinha, diminuída quarenta vezes, já não dava para mais nada. Nem jeito de segurar na chave teve, a qual lhe pareceu como enorme maçaneta, de diâmetro igual à altura do seu corpo — o mesmo que a tora de um grande jequitibá para um homem dos antigos.
Dos antigos, sim, porque, se todos os homens estavam agora tão reduzidos de tamanho quanto ela, quem quisesse referir-se aos homens da véspera tinha de dizer "os homens antigos".
Emília sentou-se em cima daquela enorme tora de jequitibá, sem saber como descer.
— E agora?
Pensou, pensou, pensou.
— Vou atirar-me — resolveu. — Meu peso deve estar igual ao peso duma formiga saúva e, portanto, se me atirar, devo cair com a leveza de um cisquinho — além de que há lá embaixo aquela montanha de pano.
E assim fez. Atirou-se em cima da montanha de pano.
E foi então que descobriu uma grande coisa: o pano daquela montanha era uma fazenda de enormes ramos de rosas vermelhas — iguais aos ramos de rosinhas do seu vestido evaporado — e compreendeu tudo. A enorme montanha de pano não era mais que o seu próprio vestido largado no chão. Quando baixou a chave e sofreu o instantâneo apequena-mento, achou-se no meio do vestido o qual, sem o apoio do corpo que o sustinha, desabou, dando à minúscula dona lá dentro aquela impressão de circo que vinha abaixo.
— Que coisa! -- exclamou Emília. — Aquele imenso pano que formou o labirinto em redor de mim era o meu vestido. Felizmente a caixa do superpó estava na minha mão e não no bolso. Se tivesse no bolso, como poderia eu tirá-la agora do seio desta enorme montanha? Que coisa formidável!...
Emília pensou por mais uns instantes. Tinha de abandonar ali todo aquele precioso pó, apesar de ser o único que havia lá no sítio. Pois como levar de volta a caixa-pedestal? Se estivesse vestida, em seus bolsos ainda caberiam algumas pitadinhas. Mas daquele modo, nua que nem minhoca, o mais que poderia levar era o que coubesse em suas mãos — um grãozinho apenas em cada uma. Mas antes isso do que nada — e Emília tomou um grão de pó em cada mão.
Depois aspirou um terceiro grãozinho e — fiun!... lá se foi pelos ares, de volta ao sítio de Dona Benta.
...
XIII Revelações
O sol estava quente. Emília, afogueada pelo exercício não pôde mais com o calor do algodão. Despiu-se e ficou nuazinha na palma da mão do Visconde, só de botas. Ele ergueu-a à altura do nariz e disse:
— Pode falar. Conte tudo o que houve.
Emília contou tudo — a sua viagem à Casa das Chaves, a puxada para baixo da Chave do Tamanho e o "apequena-mento".
O Visconde horrorizou-se.
— Será possível? Então foi você, Emília, a causadora do tremendo desastre que vitimou a "humanidade clássica?"
— Fui eu, sim, mas não foi por querer. Eu queria apenas descobrir a Chave da Guerra, só isso. Mas as chaves não tinham letreiro. Resolvi então ir mexendo em todas até acertar. A primeira que peguei era a Chave do Tamanho — quem primeiro ficou sem tamanho fui eu. E como perdi o tamanho, não pude erguer de novo aquela chave — e pronto.
O Visconde não voltava a si do assombro.
— É espantoso o que você fez, Emília! Isso já não é reinação. Isso é catástrofe! Pelo que observei lá no sítio estou imaginando o que se deu no mundo inteiro — e agora eu ia indo à cidade para assuntar, para ver se o apequenamento alcançou todas as criaturas.
— Já estive lá e vi — volveu Emília. — Alcançou sim. O tamanho de todas as gentes levou a breca. Quem manda agora nas cidades são as galinhas, os passarinhos e os gatos — e contou a história do pinto sura. Se não fosse aquele malvado, eu estava muito bem lá no sítio. Ele é que me atrapalhou.
— Pois o que você fez passa de todas as contas, Emília! Se os homens souberem, não perdoam. Agarram-na e assam-na viva na maior das fogueiras. Incrível! Destruir o tamanho das criaturas!... Sabe que isso corresponde a destruir toda a civilização humana? Desde que o mundo é mundo, os homens, com as maiores dificuldades, foram construindo essa civilização feita de casas, máquinas, estradas, veículos, idéias. Tudo estava em relação com o tamanho natural dos homens. Mas agora com a redução do tamanho, nada mais serve e, portanto, o que você fez, Emília, foi destruir a civilização! ... Do tamanhinho que os homens ficaram, eles têm de criar outra civilização muito diferente — isso na hipótese de subsistirem. O Visconde gostava muito da palavra "subsistir".
— Pois podem subsistir muito bem — resolveu Emília. — Eu estou subsistindo perfeitamente. Já escapei de vários perigos — duma "paquinha" feroz, do Manchinha, da aranha caranguejeira, do beija-flor, do vento, da tempestade — e posso ir escapando de mil outros. Juro que vou subsistir. Apliquei em meu corpo este mimetismo do algodão e pronto.
— Mas, Emília, lembre-se que você é você e os outros são os outros.
Quantos homens já não pereceram? Só os que não puderam sair de dentro das roupas, quantos e quantos, Emília!... E os milhões de soldados em guerra lá na Rússia em pleno inverno, que terá acontecido com eles?
— Ah, esses viraram picolé — juro!...
— E não se horroriza com isso? Ainda caçoa?
— Por que horrorizar-me? Eles não estavam se matando uns aos outros? Eu até lhes poupei o horrível trabalho da matança a tiros de canhão.
— E pelas cidades e roças do mundo inteiro! Quando imagino o que deve ter acontecido nas cidades e nos campos, meus cabelos ficam de pé.- E agora venho a saber que a causadora de tudo foi você, a Emília — a Emilinha lá do sítio de Dona Benta!... Evidentemente você se excedeu, Emília.
O Visconde estava tão tonto com os acontecimentos, e ficou tão bravo com ela, que Emília danou e sustentou o que havia feito.
— Pois acabei com o Tamanho e fiz muito bem! — disse ela. — Para que esse trambolho do Tamanho? Não há tantos e tantos milhões de seres que vivem sem tamanho? Tamanho é atraso. Quer uma coisa mais atrasada que um brontossauro ou mastodonte? Tão atrasados que levaram a breca, não aguentaram a "glaciação", como o Walt Disney mostrou na Fantasia.
Compare a estupidez desses monstros tamanhudos com a leveza inteligente duma abelha ou formiga — e por isso os brontossauros e mastodontes só existem hoje nos museus, enquanto as abelhas e as formigas andam por toda parte aos bilhões. Eu acabei com o Tamanho entre os homens e fiz muito bem. Um dia a humanidade nova me há de agradecer o presente, depois que a raça nova dos "homitos" se adaptar. O Visconde suspirou.
— Adaptar-se! Você usa das palavras da ciência mas não sabe. Repete-as como papagaio. Isso de adaptação é certo, mas é coisa de milhares de milhões de anos, Emília. Pensa então que do dia para a noite essa enorme população humana, que você apequenou e está nos maiores apuros, vai ter tempo de adaptar-se? Morre tudo antes disso, como peixe fora d'água — e adeus Homo sapiens!
— Homo sapiens duma figa! Morrem muitos, bem sei. Morrem milhões, mas basta que fique um casal de Adão e Eva para que tudo recomece. O mundo já andava muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso — gente demais, como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei o mundo. A vida agora vai começar de novo — e muito mais interessante. Acabaram-se os canhões, e tanques, e pólvora, e bombas incendiárias. Vamos ter coisas muito superiores — besouros para voar, tropas de formiga para o transporte de cargas, o problema da alimentação resolvido, porque com uma isca de qualquer coisa um estômago se enche.
— Mas... O Visconde, como bom sábio que era, engasgou e começou a achar razãozinha nas ideias da Emília.
— Pense bem, Visconde. A tal "civilização clássica" estava chegando ao fim. Os homens não viam outra solução além da guerra — isto é, matar, matar, matar, destruir todas as coisas criadas pela própria civilização — as cidades, as fábricas, os navios, tudo. Pense bem, Visconde. Essa tal civilização havia falhado. Havia enveredado por um beco sem saída — e a saída que achava qual era? Suicidar-se a tiros de canhão. Ora bolas! Eu até me admiro de ver um sábio com um cartolão desse tamanho, defender um mundo de ditadores, cada qual pior que o outro.
O Visconde começava a concordar.
— Além disso — continuou Emília — se os homens querem regressar à tal besteira do tamanho, nada mais fácil. Sua alma, sua palma.
— Como?
— Muito simples. Poderei voltar à Casa das Chaves. Eu sei o jeito. Iremos juntos. Como não tenho força para levantar a chave, o Visconde a levanta e pronto — tudo fica outra vez tamanhudo — e que se fomentem — que se matem à vontade — que se devorem. Eu me desinteresso. Quis o bem da humanidade. Acabei com a estupidez maior de todas, que era o Tamanho. Mas não querem? Não estão contentes? Teimam em continuar na vida de mastodontes bípedes? Pois sua alma, seu palmito! Que volte o Tamanho. Mas depois não venham se queixar para mim...
O Visconde estava pensando. Sim, Emília tinha razão. Eles podiam fazer uma consulta aos homenzinhos. Se quisessem voltar ao tamanho antigo, muito que bem: Se não quisesse, melhor. Lá no fundo do coração o Visconde preferia que as coisas ficassem como estavam, porque ele passara a gigante, em vez de continuar um simples sabugo. E Emília realmente tinha razão. Os insetos são os seres mais aperfeiçoados que existem e não têm tamanho. Ora, com a sua inteligência os homens pequeninhos poderiam dominar os insetos, utilizar-se de milhares deles para mil coisas e construir uma nova civilização muitíssimo mais interessante que a velha. E resolveu:
— Pois bem, Emília, faremos uma consulta aos povos do Picapau Amarelo. Se a maioria quiser a volta do Tamanho, iremos juntos até à tal Casa e recolocarei a chave na posição em que você a encontrou. E se a maioria quiser esta Ordem Nova, então que fique tudo como está.
— Pois é! — concordou Emília. — O remédio agora é um 'bom "chá de plebiscito". Mas por causa das dúvidas, Visconde, não conte a ninguém que fui eu a bulidora da chave. Ninguém precisa saber — nem Dona Benta, nem Narizinho. Jura que não conta?
— Está claro que juro. Se eu contasse, você estaria perdida...
...
— Eu viajarei muito bem dentro da sua cartola, Visconde. Basta que me abra ali uma janelinha.
O Visconde aprovou a ideia. Depôs Emília no chão, tirou da cabeça à cartola e com o corte duma lasca de quartzo abriu no papelão da cartola uma janelinha de 3 por 3 milímetros.
— Maior, Visconde. Faça uma janelinha de 3 por 9.
— Por quê?
— Porque se encontrarmos o Juquinha e a Candoca, eles terão de seguir comigo aqui dentro — e também precisam de janela.
O Visconde abriu um janelão de 3 por 10. — Antes maior do que menor. Assim ninguém brigará em cima da minha cabeça por falta de espaço vital...
XXIV O Plebiscito
Fiunnn...n...n...n...n... Plaft! O Visconde caiu sentado na varanda do Pica-pau Amarelo.
...
— E quando vai ser o plebiscito, Emília? — perguntou Narizinho.
— Agora. Apressei minha “viagem” de regresso justamente por causa do plebiscito. Sou democrática. Quero que as coisas sejam feitas segundo a vontade da maioria. Se a maioria quiser a volta do Tamanho, eu sentirei muito, mas farei voltar o Tamanho. Levo o Visconde à Casa das Chaves e ele põe a Chave do Tamanho na posição em que estava.
— Pois então comece.
Emília fez o Visconde colocá-la no alto da cartola e de lá, debaixo do chapéu-de-sapo, gritou:
— Plebiscito! Plebiscito! Aproximem-se todos para votar.
Todos rodearam a cartola.
— Quem quiser a volta do Tamanho, levante a mão.
— Os adultos ali presentes levantaram a mão. Eram conservadores, com ideias emperradas na cabeça e preferiam que tudo voltasse a ser como antigamente. Emília contou os votos. Dona Benta, tia Nastácia, o Coronel.
Três votos tamanhudos.
— E agora — continuou Emília — quem não quiser o Tamanho, levante o pé!
A criançada inteira levantou o pé. Eram radicais. Não tinham ideias emperradas na cabeça. Gostavam de mudanças. Emília contou os votos.
Narizinho, Pedrinho e Juquinha. Três votos destamanhudos.
— Empatou! Empatou! Viva! Viva!...
— Falta o voto da Candoca — disse Narizinho; mas Emília, que tinha medo do voto da Candoca, porque as saudades da mamãe podiam fazê-la votar a favor do Tamanho, declarou logo:
— A Candoca ainda não tem idade para votar. Empatou! E agora, com os "meus" votos, o Tamanho perde.
Os "meus" eram o dela e do Visconde. Mas Dona Benta reclamou:
— Falta a votação do terreiro.
Era verdade. Faltavam os votos do Burro Falante, do Quindim, da Môcha e do Rabicó. Emília mandou que o Visconde pusesse a cartola e lá foi para o terreiro. Depois de contar a história do plebiscito ao Burro Falante, pediu-lhe o voto.
— Eu voto pelo Tamanho — respondeu com firmeza o burro, sem piscar as orelhas.
Emília danou.
— Por quê?
O Conselheiro explicou que não podia conformar-se com a idéia duma senhora tão distinta como Dona Benta ficar toda a vida naquela situaçãozinha de inseto descascado. A gratidão mandava-o votar pela volta do Tamanho.
— Bom. Se é por gratidão, passa. Vamos agora ver aquele dorminhoco do Quindim.
O rinoceronte, lá embaixo da figueira, votou em branco e não deu satisfações. Quindim andava muito antipático e neurastênico.
A vaca Mocha também votou pelo Tamanho, o que era natural, pois sem uma tia Nastácia grande ela não teria mais as suas rações de espigas de milho do costume.
— E Rabicó? — perguntou Emília.
— Está ausente — respondeu o burro — Não faz mal. Conheço Rabicó, sei que ele é contra o Tamanho — e Emília apossou-se do voto de Rabicó. Mesmo assim o Tamanho estava ganhando. Havia 5 votos a favor do Tamanho e só 4 contra. Mas com os dois votos finais, o dela e o do Visconde, o Tamanho seria derrotado por um.
Emília voltou para a cômoda muito contente. Em seu rostinho brilhava o sorriso da vitória.
— Os votos do terreiro — disse ela — aumentaram a contagem a favor do Tamanho, mas há ainda os nossos, o meu voto e o do Visconde, e nós votamos contra o Tamanho. Temos assim 6 votos contra e 5 a favor. O Tamanho perdeu. Viva, viva a criançada!
Dona Benta interveio.
— Como o Visconde se acha presente — disse ela — não vejo razão para que outra pessoa vote por ele. Qual é o seu voto, Visconde?
Emília estava mais que certa de que o voto do Visconde iria ser igual ao seu, não só porque o Visconde era uma propriedade sua, um verdadeiro escravo, como porque, depois do apequenamento, ele se tornara um gigante gigantesco e, pois, muito mais importante que o pobre sabugo de pernas que sempre fora. Mas enganou-se. O Visconde andava com medo das suas tremendas responsabilidades novas, e cansado de ser dirigido daqui para ali pela Emília, e sujeito até a ser emprestado a governos como se fosse um guarda-chuva. Ah, muito melhor a sua pacata vida de antigamente, em que era pequeno entre os grandes. Muito melhor a vida calma de modesto sabugo de perninhas do que a vida agitada de maior gigante do mundo. Além disso, aquela "fazenda" em sua cartola já lhe andava dando dores de cabeça.
Começara uma simples janelinha na cartola. Depois vieram a porta, as sacadas, a plantação de musgos e chapéus-de-sapo, e os órfãos, e os besouros do Juquinha, e aquilo fora virando quarto de badulaques e museu.
Emília levava para lá quanta coisa curiosa descobria pelo caminho — moscas secas, caquinhos de louça, ovos de borboletas e até corações e rins secos de minhocas, lá da charqueada de Pail City. Era demais. E o Visconde não tinha dúvida nenhuma quanto aos "melhoramentos" que ela acabaria introduzindo em sua cartola — até uma lareira como aquela da Casa Branca, com grande perigo de incêndio em sua cabeça. O melhor era dar um golpe de morte na Nova Ordem. E foi assim que, quando Dona Benta lhe perguntou qual era o seu voto, o Visconde respondeu intrepidamente:
— Voto pelo Tamanho!
— Miserável! — berrou Emília, e em seu desespero caiu do alto da cartola, machucando o nariz. A criançada também protestou:
— O voto dele não vale! Ele é milho! Milho não vota! Dona Benta, porém, manteve o voto decisivo do Visconde.
Vendo que não havia remédio senão conformar-se com a opinião do maior número, Emília fungou, fungou e, com a mais nobre humildade — grande exemplo para todos os ditadores do mundo — disse para o Visconde:
— Pois vamos para a Casa das Chaves, macaco!
XXV A volta do Tamanho
Foram. Lá na Casa das Chaves o Visconde com facilidade colocou a Chave do Tamanho na posição antiga, e o fenômeno que se operou foi o reverso do apequenamento — foi um instantâneo engrandecimento. Todos os
minúsculos insetos descascados, em todos os países, subitamente voltaram ao velho tamanho anterior — e o que aconteceu daria assunto para um livro ainda maior que este.
Os insetos que estavam em buraquinhos ou frestas sofreram horrores, porque o "entalamento" não os deixava sair. Supõe-se que milhares de criaturas morreram assim. Aos que foram restituídos ao tamanho anterior a primeira coisa que lhes doeu foi a vergonha. Vexadíssimos de se verem nus, lançaram-se aos montinhos de roupas mais próximos e foram se vestindo precipitadamente. Ficou uma humanidade o que havia de cômica, dada a inevitável troca de roupas — homens vestidos de mulher, mulheres vestidas de homem, este com calças muito curtas e aquele com mangas sobrando — um verdadeiro carnaval. A fúria com que a vergonha havia voltado deu razão a Emília — vergonha é uma simples questão de tamanho.
Lá na cômoda houve um grande tombo. Aquele imenso retângulo de madeira envernizada onde caberiam folgadas centenas de criaturinhas reduzidas não comportou o volume das sete pessoas subitamente agrandadas — e caiu gente de todos os lados. E como as tanguinhas e mais vestuários de algodão em rama arrebentassem todos se sentiram terrivelmente nus — e veio o mesmo corre-corre para as roupas. Tia Nastácia nem se lembrou de xingar o Coronel Teodorico, de tão atrapalhada em enfiar suas saias lá na saleta. Em segundos estavam todos vestidos como sempre — exceto o Juquinha, a Candoca e o Coronel, cujas roupas haviam ficado em suas respectivas residências. Pedrinho levou o novo amigo para o seu quarto, onde lhe deu um terno velho; Narizinho cuidou de Candoca. Mas quem iria cuidar do Coronel?
Quando Emília e o Visconde reapareceram, de volta da Casa das Chaves, já igualados em tamanho, porque os dois mediam 40 centímetros, a situação era aquela: todos restaurados no tamanho natural, todos vestidos e todos presentes, menos um — o Coronel.
— Que é do Coronel?
— Ninguém sabia.
Procura que procura, foram encontrá-lo escondido no guarda-roupa de Dona Benta.
— Estou descomposto — disse ele lá de dentro. — Mandem buscar minhas roupas lá em casa.
— Credo! — exclamou tia Nastácia, persignando-se. Imaginem em que estado vai ficar a roupa de Sinhá com esse cavalão em pelo pisando em tudo lá dentro...
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