A PILULA FALANTE
Monteiro Lobato
Narizinho levantou-se cedo para levar a boneca Emília ao consultório de Dr. Caramujo, no Reino das Águas Claras.
Encontrou-o com cara de quem havia comido um urutu recheado de escorpiões. Seu estoque de pílulas havia sido saqueado.
O doutor até sugeriu uma operação. Era só matar um papagaio e extrair a falinha dele.
Narizinho que não admitia violência não aceitou.
Apareceu então um sapo num carrinho. Nem conseguia andar por causa do estufamento na barriga. O grande cirurgião abriu a barriga do sapo e com a pinça do caranguejo começou a retirar as pílulas. Eram 99. A alegria do doutor foi imensa. Poderia enfim curar Emília.
Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante.
A primeira coisa que disse foi:
-Estou com um horrível gosto de sapo na boca!
E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada, disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.
— Não é preciso — explicou o grande médico. — Ela que fale até cansar. Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isto é “fala recolhida”, que tem de ser botada para fora.
E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.
— Ora graças! — exclamou a menina. — Podemos agora conversar como gente.
Emília empertigou-se toda e começou a dizer na sua falinha fina de boneca de pano.
Narizinho viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o tempo poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu.
— Melhor que seja assim, — filosofou Narizinho. — As ideias de vovó e tia Nastácia a respeito de tudo são tão sabidas que a gente já as adivinha antes que elas abram a boca. As ideias de Emília hão de serem sempre novidades.
E voltou para o palácio, onde a corte estava reunida para outra festa que o príncipe Escamado havia organizado. Mas assim que entrou na sala de baile, rompeu um grande estrondo lá fora — o estrondo duma voz que dizia:
— Narizinho, vovó está chamando...
Tamanho susto causou aquele trovão entre os personagens do reino marinho, que todos se sumiram, como por encanto.
Sobreveio então uma ventania muito forte, que envolveu a menina e a boneca, arrastando-as do fundo do oceano para a beira do ribeirãozinho do pomar.
Estavam no sítio de dona Benta outra vez. Narizinho correu para casa. Assim que a viu entrar, dona Benta foi dizendo:
— Uma grande novidade, Lúcia. Você vai ter agora um bom companheiro aqui no sítio para brincar. Adivinhe quem é?
A menina lembrou-se logo do Major Agarra, que prometera vir morar com ela.
— Já sei vovó! É o Major Agarra-e-não-larga-mais. Ele bem me falou que vinha.
Dona Benta fez cara de espanto.
— Você está sonhando, menina. Não se trata de major nenhum.
— Se não é o sapo, então é o papagaio! — continuou Narizinho, recordando-se de que também o papagaio prometera vir visitá-la.
— Qual sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacaré. Quem vem passar uns tempos conosco é o Pedrinho, filho da minha filha Antonica.
Lúcia deu três pinotes de alegria. — E quando chega o meu primo? — indagou.
— Deve chegar amanhã de manhã. Apronte-se. Arrume o quarto de hóspedes e endireite essa boneca. Onde se viu uma menina do seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e de um olho só?
— Culpa dela, dona Benta!
Narizinho tirou minha saia para vestir o sapão rajado — disse Emília falando pela primeira vez depois que chegara ao sítio.
Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:
— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...
A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
— Que é, sinhá? — perguntou.
— A boneca de Narizinho está falando!...
A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira.
— Impossível sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê. — Mangando o seu nariz! — gritou Emília furiosa. — Falo, sim, e hei de falar. Eu não falava porque era muda, mas o doutor Cara de Coruja me deu uma bolinha de barriga de sapo e eu engoli e fiquei falando e hei de falar a vida inteira, sabe?
A negra abriu a maior boca do mundo.
— E fala mesmo, sinhá!... — exclamou no auge do assombro. — Fala que nem uma gente! Credo! O mundo está perdido... E encostou-se à parede para não cair.
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